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terça-feira, 16 de outubro de 2012

O avesso da retórica


Paris, fins do século XVIII. Madame Guilhotina corta cabeças coroadas. Na praça lavada de sangue, as terríveis megeras param de tricotar e, enfiando os novelos de lã nas bolsas ensebadas, retiram-se em silêncio. O mundo se estilhaça varrido pelos ventos que sopram da Bastilha.
Enquanto isso, nas eternas e verdejantes encostas do monte Parnaso, ao abrigo das paixões humanas, a Musa sente a pele fina arrepiar-se num pressentimento. Deixando a lira e o arco, inclina-se pensativa sobre os bordos de uma fonte onde a estátua de um menino molha a ponta de suas setas e contempla por instantes a própria radiante formosura: um rosto grave e gentil e a ondulada cabeleira coroada de mirtos e de rosas. Tudo parece tão sereno. Mas uma súbita aragem sopra por entre as folhas, encrespando de leve a superfície das águas. Nada mais poderia ser igual ao que era antes... Três palavras mágicas, — liberdade, igualdade, fraternidade —, um barrete vermelho, e eis o mundo virado pelo avesso.
Século XIX: novas idéias, progresso material, ascensão da burguesia, inquietação, pluralismo. A Revolução Francesa não foi apenas um acontecimento circunscrito aos limites dos seus próprios horizontes, foi um marco decisivo na história da humanidade. As transformações que se operaram a partir deste movimento tiveram o poder de reformular conceitos e teorias, ensejando novas maneiras de ver-se o mundo e, conseqüentemente, novos procedimentos nas artes e na literatura.
Se, do ponto de vista político, o século XIX, para o mundo ocidental, caracterizou-se por uma ruptura em relação aos modelos do passado, no campo literário também foi palco de uma mudança consideravelmente assinalável.
Foi em meados do século XIX que algumas correntes de pensamento começaram a contestar o belo como atributo primordial da obra de arte e a poesia como o veículo sublime de sentimentos elevados.
Se Victor Hugo já ameaçara colocar um barrete vermelho no dicionário, foi com Charles Baudelaire, profundamente influenciado por Edgar Alan Poe, que a poesia toma consciência de que, do outro lado do espelho, Apolo e Calibã teriam a mesma face.
“Beleza! monstro horrendo”, exclama o poeta das Flores do mal em seu “Hino à beleza”. Mais além, extasia-se com o putrefato esplendor de uma carniça e entoa versos à dissolução da carne e aos vermes que a devoram, escandalizando o público pela escolha de temas e palavras considerados, até então, indignos de figurar nas estrofes de um poema.
De Baudelaire, Rimbaud, Verlaine, Mallarmé, podemos afirmar que prepararam o caminho das vanguardas literárias cujo aparecimento fez-se sentir a partir da segunda metade do século XIX, multiplicando-se em -ismos e tendências que se espraiaram no estuário farto dos experimentalismos que marcaram o início do século XX, cujos reflexos podem ser vistos nas literaturas de Portugal e do Brasil.
Aqui não nos propomos fazer história e muito menos história literária. O tema escolhido não deixa margem a outras intenções: poesia como expressão do cotidiano, poesia como tradução de uma experiência fundada no real, testemunho inequívoco da militância no dia-a-dia.
Se acrescentamos, como preâmbulo, este recorte no tempo, este esboço tão rápido e impreciso como uma paisagem vista do alto de um aeroplano, foi para assinalar que, a partir do século XIX, algo mudou no modus vivendi/operandi dos poetas. Até o advento do Romantismo, a poesia esteve sempre a serviço de alguma causa. A partir de então, instaura-se o descompromisso com tudo que não seja a própria poesia. O poema deixa de ser objeto, para assumir a posição de sujeito, a refletir sobre si mesmo, Narciso sem pudor.
Nesse momento, os poetas adquirem consciência de que o poema não deve servir apenas de veículo ao sublime, mas também pode expressar as coisas simples da vida, instaurando a poética do cotidiano na prática de uma linguagem que não busca o enobrecimento artificial do tema, mas procura conservar o frescor e o brilho da simplicidade. Na estrofe final de sua “Art poétique”, poema datado de 1874, mas publicado dez anos depois, Paul Verlaine já define esta procura:

Seja teu verso a boa aventura

Solta ao vento vivaz da manhã

Que recende a erva-doce e hortelã...

E tudo mais é literatura.


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A poesia está em tudo,
tanto nos amores, como nos chinelos.



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