Desde 2011, quando houve a polêmica do livro que defende o “nós pega” na escola; em um obra distribuída pelo MEC, o debate sobre o papel da língua popular na sala de aula tomou corpo. O debate se acirrou tendo de um lado os linguistas que defendem a obra que prega que o aluno
pode falar “os livro”, e de outro, os
que acreditam que esta prática limita a ascensão social dos próprios
alunos.

Mas, como não poderia deixar de ser, O Externauta deixa aqui sua contribuição, ou melhor, copia e publica o texto de Ferreira Gullar, grande poeta, crítico de arte, biógrafo, tradutor, memorialista e ensaísta brasileiro, que já esteve aqui no blog (Este é Ferreira), e que demonstra de forma clara como tudo não passa de...sei lá, lê aí:
ALGUÉM FALA ERRADO?
Sei muito bem que, de acordo com a lingüística
moderna, não existem o certo e o errado no uso do idioma nacional, ou melhor,
não existe o errado, o que significa que tudo está certo e que minha antiga
professora de português, que me ensinou a fazer análise lógica e gramatical das
proposições em língua portuguesa, era uma louca, uma vez que a língua não tem
lógica como ela supunha e a gramática é de fato um instrumento de repressão;
perdeu seu tempo dona Rosinha ensinando-me que o verbo concorda com o sujeito,
e os adjetivos com os substantivos, como também concordam com estes os artigos,
ou seja, que não se deve dizer dois dúzias de ovos, uma vez que dúzia é palavra
feminina, donde ter que dizer "duas dúzias de ovos", o que era, como
sei agora, um ensinamento errôneo ou, no máximo, correto apenas naquela época,
pois hoje ouço na televisão e leio nos jornais "as 6 milhões de
pessoas", construção indiscutivelmente correta hoje, quando os artigos não
têm mais que concordar com os substantivos e tampouco com o verbo, como
me ensinara ela, pois me corrigia quando eu dizia "ele foi um dos que fez
barulho", afirmando que eu deveria dizer "um dos que fizeram
barulho", e me explicava que era como se dissesse "foi um dos três
que fizeram barulho", explicação antiquada, do mesmo modo que aquela outra
referente à regência dos verbos e que eu, burróide, entendi como certo quando,
na verdade, o certo não é, por exemplo, dizer "a comida de que ela
necessita" ou "o problema de que falou o presidente", e, sim, "o
problema que falou o presidente", frase que, no meu antiquado
entendimento, resulta estranha, pois parece dizer não que o presidente falou do
problema, mas que o problema falou do presidente, donde se conclui que sou
realmente um sujeito maluco, que já está até ouvindo "vozes" e, além
de maluco, fora de moda, porque não se conforma com o fato de terem
praticamente eliminado de nossa língua as palavras "este" e
"esta", que foram substituídas por "esse" e
"essa", pois sem nenhuma dúvida é uma tolice querer que o
locutor da televisão, referindo-se à noite em que fala, diga "no programa
desta noite" em lugar de "no programa dessa noite", que, dentro
do critério de que o errado é certo, está certíssimo, ao contrário do que exige
esta minha birra, culpa da professora Rosinha, por ter insistido em nos
convencer de que "este" designa algo que está perto de mim,
"esse", algo que está perto de você e "aquele", o que está
longe dos dois, e ainda a minha teimosia em achar que essas palavras
correspondem a situações reais da vida, não são meras invenções de gramáticos;
e, de tão sectário que sou nesta mania de preservar a língua, não suporto ouvir
a expressão "isto não significa dizer" em vez de "isto não quer
dizer", que é o correto, ou era, além de expressão legítima, enquanto a
outra é um anglicismo, mas que, por isso mesmo, há quem considere ainda mais
correta, porque estamos na época da globalização, o que torna mais bobo ainda
implicar com estrangeirismos, como aquele meu amigo que fica irritado ao
ler nos jornais que "a reunião da Câmara foi postergada para
segunda-feira", em vez de "adiada", como sempre se disse e que
facilita o entendimento da maioria das pessoas, já que nem todos os brasileiros
amargaram o exílio em países de língua espanhola. Mas já quase admito ser muita
pretensão teimar em dizer "o governador cogita de enviar à Câmara um novo
projeto de lei", pois isso de que o verbo "cogitar" rege a
preposição "de" também é bobagem, coisa de gente pretensiosa que
precisa se impor às outras falando arrogantemente "correto", como se houvesse
modo de falar certo ou errado, de falar correto, pois a verdade é que tal
pretensão oculta um preconceito de classe, uma discriminação contra aqueles que
não tiveram oportunidade de estudar e, por essa razão, não podem falar como os
que usufruíram do privilégio burguês, ou pequeno-burguês, de estudar gramática,
o que vem acentuar a injustiça social. Como se não bastasse serem aqueles
pobres discriminados no trabalho e no conforto, ainda se acrescenta essa
discriminação, acusando-os de falarem mal a língua, da qual são eles de fato os
criadores e que foi apropriada pelos ricos e poderosos que agora se consideram
donos dela, como de tudo o mais que existe neste mundo, pois eles de fato não
toleram a hipótese de que todas as pessoas sejam iguais e que todas elas falem
corretamente ainda que gramáticos elitistas insistam em dizer que falam errado
só porque não falam segundo as normas da classe dominante, que, além de impedir
os pobres de estudar, acusam-nos de serem ignorantes, atitude de fato inaceitável,
pois sabemos que todas as pessoas são igualmente inteligentes e talentosas,
portanto capazes de criar obras de arte geniais, de conceber teorias iguais às
que conceberam Galileu e Einstein, e só não o fazem porque são deliberadamente
impedidas de dar vazão a seu gênio criador; e também neste caso se comete a
injustiça de consagrar como gênios alguns homens privilegiados e não
atribuir qualquer valor aos milhões, perdão, às milhões de pessoas tidas como
comuns, e só não consigo entender é por que os lingüistas que defendem tais
idéias continuam a escrever corretamente tal como exigia minha professora do
colégio São Luís de Gonzaga, naqueles distantes anos da década de 1940...
Diante disto, não está mais aqui quem falou. (Folha de SP, 25/09/2005)
Ferreira Gullar
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Fontes: www.oexternauta.blogspot.com
www.google.com
www.portal.mec.gov.br
www.ultimosegundo.ig.com.br
www.veja.abril.com.br
www.cartacapital.com.br
www.folha.uol.com.br