Paris, fins do século XVIII. Madame
Guilhotina corta cabeças coroadas. Na praça lavada de sangue, as terríveis
megeras param de tricotar e, enfiando os novelos de lã nas bolsas ensebadas,
retiram-se em silêncio. O mundo se estilhaça varrido pelos ventos que sopram da
Bastilha.
Enquanto isso, nas eternas e verdejantes
encostas do monte Parnaso, ao abrigo das paixões humanas, a Musa sente a pele
fina arrepiar-se num pressentimento. Deixando a lira e o arco, inclina-se
pensativa sobre os bordos de uma fonte onde a estátua de um menino molha a ponta
de suas setas e contempla por instantes a própria radiante formosura: um rosto
grave e gentil e a ondulada cabeleira coroada de mirtos e de rosas. Tudo parece
tão sereno. Mas uma súbita aragem sopra por entre as folhas, encrespando de leve
a superfície das águas. Nada mais poderia ser igual ao que era antes... Três
palavras mágicas, — liberdade, igualdade, fraternidade —, um barrete vermelho, e
eis o mundo virado pelo avesso.
Século XIX: novas idéias, progresso
material, ascensão da burguesia, inquietação, pluralismo. A Revolução Francesa
não foi apenas um acontecimento circunscrito aos limites dos seus próprios
horizontes, foi um marco decisivo na história da humanidade. As transformações
que se operaram a partir deste movimento tiveram o poder de reformular conceitos
e teorias, ensejando novas maneiras de ver-se o mundo e, conseqüentemente, novos
procedimentos nas artes e na literatura.
Se, do ponto de vista político, o século
XIX, para o mundo ocidental, caracterizou-se por uma ruptura em relação aos
modelos do passado, no campo literário também foi palco de uma mudança
consideravelmente assinalável.
Foi em meados do século XIX que algumas
correntes de pensamento começaram a contestar o
belo como atributo primordial da obra
de arte e a poesia como o veículo sublime de sentimentos elevados.
Se Victor Hugo já ameaçara colocar um
barrete vermelho no dicionário, foi com Charles Baudelaire, profundamente
influenciado por Edgar Alan Poe, que a poesia toma consciência de que, do outro
lado do espelho, Apolo e Calibã teriam a mesma face.
“Beleza! monstro horrendo”,
exclama o poeta das Flores do mal em
seu “Hino à beleza”.
Mais além, extasia-se com o putrefato esplendor de uma carniça e entoa versos à
dissolução da carne e aos vermes que a devoram, escandalizando o público pela
escolha de temas e palavras considerados, até então, indignos de figurar nas
estrofes de um poema.
De Baudelaire, Rimbaud, Verlaine,
Mallarmé, podemos afirmar que prepararam o caminho das vanguardas literárias
cujo aparecimento fez-se sentir a partir da segunda metade do século XIX,
multiplicando-se em -ismos e tendências que se espraiaram no estuário
farto dos experimentalismos que marcaram o início do século XX, cujos reflexos
podem ser vistos nas literaturas de Portugal e do Brasil.
Aqui não nos propomos fazer história e
muito menos história literária. O tema escolhido não deixa margem a outras
intenções: poesia como expressão do cotidiano, poesia como tradução de uma experiência fundada no real, testemunho
inequívoco da militância no dia-a-dia.
Se acrescentamos, como preâmbulo, este
recorte no tempo, este esboço tão rápido e impreciso como uma paisagem vista do
alto de um aeroplano, foi para assinalar que, a partir do século XIX, algo mudou
no modus vivendi/operandi dos poetas.
Até o advento do Romantismo, a poesia esteve sempre a serviço de alguma causa. A
partir de então, instaura-se o descompromisso com tudo que não seja a própria
poesia. O poema deixa de ser objeto, para assumir a posição de sujeito, a
refletir sobre si mesmo, Narciso sem pudor.
Nesse momento, os poetas adquirem
consciência de que o poema não deve servir apenas de veículo ao sublime, mas
também pode expressar as coisas simples da vida, instaurando a poética do
cotidiano na prática de uma linguagem que não busca o
enobrecimento artificial do tema, mas
procura conservar o frescor e o brilho da simplicidade. Na estrofe final de sua
“Art poétique”, poema datado de 1874, mas publicado dez anos depois, Paul
Verlaine já define esta procura:
Seja teu verso a boa aventura
Solta ao vento vivaz da manhã
Que recende a erva-doce e hortelã...
E tudo mais é literatura.
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A
poesia está em tudo,
tanto nos amores, como nos chinelos.
tanto nos amores, como nos chinelos.
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