Já faz algum tempo que não publico poemas e cronicas de outros autores. Não que isso tenha sido proposital; apenas o resultado de fatores reunidos ao acaso.
É isso, o acaso, que passa desapercebido, mudando e moldando nossas vidas. Alguns não acreditam nele, dizem que somos predestinados. Outros acreditam que somos os únicos responsáveis por nosso destino. você está lendo este texto ao acaso, ou foi o destino?
De qualquer forma, resolvi publicar um texto de
Ruben Alves; pedagogo, poeta e filósofo de todas as horas, cronista
do cotidiano, contador de estórias, ensaísta, teólogo, acadêmico, autor
de livros para crianças, psicanalista, Rubem Alves é um dos intelectuais
mais famosos e respeitados do Brasil.
Nascido no dia 15 de setembro de 1933 em Dores da Boa Esperança, uma pequena cidade do sul do estado de Minas Gerais, foi agraciado com prêmios como o 2º lugar no
"Jabuti" de 2009, na categoria contos e crônicas.
Escolhi o texto "Escutatória", por me parecer muito atual, apesar de ter sido escrito em 1999 para o
Correio Popular, e mais que uma crítica á nossa impaciência, é uma análise da profunda dos efeitos da poluição sonora hoje perpetuada em nossas cidades. Muito barulho e pouca filosofia. Tenha um pouco de paciência e leia até o final, hein!
ESCUTATÓRIA
Sempre vejo anunciados cursos
de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer
aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um
curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular.
Escutar é complicado e sutil. Diz o
Alberto Caeiro
que "não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É
preciso também não ter filosofia nenhuma". Filosofia é um monte de
idéias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Aí a gente que não é
cego abre os olhos. Diante de nós, fora da cabeça, nos campos e matas,
estão as árvores e as flores. Ver é colocar dentro da cabeça aquilo que
existe fora. O cego não vê porque as janelas dele estão fechadas. O que
está fora não consegue entrar. A gente não é cego. As árvores e as
flores entram. Mas – coitadinhas delas – entram e caem num mar de
idéias. São misturadas nas palavras da filosofia que moram em nós.
Perdem a sua simplicidade de existir. Ficam outras coisas. Então, o que
vemos, não são as árvores e as flores. Para ser ver é preciso que a
cabeça esteja vazia.
Faz muito tempo, nunca me esqueci. Eu ia de ônibus.
Atrás duas mulheres conversavam. Uma delas contava para a amiga os seus
sofrimentos.(Contou-me uma amiga, nordestina, que o jogo que as mulheres
do nordeste gostam de fazer quando conversam umas com as outras é
comparar sofrimentos. Quanto maior o sofrimento, mais bonita é a mulher e
a sua vida. Conversar é a arte de produzir-se literariamente como
mulher de sofrimentos. Acho que foi lá que a ópera foi inventada. A alma
é uma literatura. É nisso que se baseia a psicanálise...) Voltando ao
ônibus. Falavam de sofrimentos. Uma dela contava do marido
hospitalizado, dos médicos, dos exames complicados, das injeções na veia
– a enfermeira nunca acertava – dos vômitos e das urinas. Era um relato
comovente de dor. Até que o relato chegou ao fim esperando,
evidentemente, o aplauso, admiração, uma palavra de acolhimento na alma
da outra que, supostamente, ouvia. Mas o que a sofredora ouviu foi o
seguinte: "Mas isso não é nada..." A segunda iniciou, então, uma
história de sofrimentos incomparavelmente mais terríveis e dignos de uma
ópera que os sofrimentos da primeira.
Parafraseio o Alberto Caeiro: "Não é bastante ter
ouvidos para se ouvir o que é dito. É preciso também que haja silêncio
dentro da alma." Daí a dificuldade: a gente não aguenta ouvir o que o
outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com
aquilo que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse
digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por
aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor. No fundo somos todos
iguais às duas mulheres do ônibus. Certo estava
Lichtenberg – citado
por
Murilo Mendes: "Há quem não ouça até que lhe cortem as orelhas."
Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil da
nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos...
Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os
Estados Unidos, estimulado pela revolução de 64. Pastor protestante
(não "evangélico"), foi trabalhar num programa educacional da
Igreja Presbiteriana USA, voltado para minorias. Contou-me de sua experiência
com os índios. As reuniões são estranhas. Reunidos os participantes,
ninguém fala. Há um longo, longo silêncio. (Os pianistas, antes de
iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio, como
se estivessem orando. Não rezando. Reza é falatório pra não ouvir.
Orando. Abrindo vazios de silêncio. Expulsando todas as idéias
estranhas. Também para se tocar piano é preciso não ter filosofia
nenhuma.) Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, de
repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem. Terminada a fala, novo
silêncio. Falar logo em seguida seria um grande desrespeito. Pois o
outro falou os seus pensamentos, pensamentos que julgava essenciais.
Sendo dele, os pensamentos não são meus. São-me estranhos. Comida que é
preciso digerir. Digerir leva tempo. É preciso tempo para entender o que
o outro falou. Se falo logo a seguir são duas as possibilidades.
Primeira: "Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o
que você falou. Enquanto você falava eu pensava nas coisas que eu iria
falar quando você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não
tivesse falado." Segunda: "Ouvi o que você falou. Mas isso que você
falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim.
Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou." Em ambos os casos
estou chamando o outro de tolo. O que é pior que uma bofetada. O longo
silêncio quer dizer: "Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que
você falou. E assim vai a reunião.
Há grupos religiosos cuja liturgia consiste de silêncio. Faz alguns
anos passei uma semana num mosteiro na Suíça, Grand Champs. Eu e algumas
outras pessoas ali estávamos para, juntos, escrever um livro. Era uma
antiga fazenda. Velhas construções, não me esqueço da água no chafariz
onde as pombas vinham beber. Havia uma disciplina de silêncio, não
total, mas de uma fala mínima. O que me deu enorme prazer às refeições.
Não tinha a obrigação de manter uma conversa com meus vizinhos de mesa.
Podia comer pensando na comida. Também para comer é preciso não ter
filosofia. Não ter obrigação de falar é uma felicidade. Mas logo fui
informado que parte da disciplina do mosteiro era participar da liturgia
três vezes por dia: às 7 da manhã, ao meio dia e às 6 da tarde.
Estremeci de medo. Mas obedeci. O lugar sagrado era um velho celeiro,
todo de madeira, teto muito alto. Escuro. Haviam aberto buracos na
madeira, ali colocando vidros de várias cores. Era uma atmosfera de luz
mortiça, iluminado por algumas velas sobre o altar, uma mesa simples com
um ícone oriental de Cristo. Uns poucos bancos arranjados em "U"
definiam um amplo espaço vazio, no centro, onde quem quisesse podia se
assentar numa almofada, sobre um tapete. Cheguei alguns minutos antes da
hora marcada. Era um grande silêncio. Muito frio, nuvens escuras
cobriam o céu e corriam, levadas por um vento impetuoso que descia dos
Alpes. A força do vento era tanta que o velho celeiro torcia e rangia,
como se fosse um navio de madeira num mar agitado. O vento batia nas
macieiras nuas do pomar e o barulho era como o de ondas que se quebram.
Estranhei. Os suíços são sempre pontuais. A liturgia não começava. E
ninguém tomava providências. Todos continuavam do mesmo jeito, sem nada
fazer. Ninguém que se levantasse para dizer: "Meus irmãos, vamos cantar o
hino..." Cinco minutos, dez, quinze. Só depois de vinte minutos é que
eu, estúpido, percebi que tudo já se iniciara vinte minutos antes. As
pessoas estavam lá para se alimentar de silêncio. E eu comecei a me
alimentar de silêncio também. Não basta o silêncio de fora. É preciso
silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio
dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia. Eu comecei a
ouvir. Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que
se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras. É
música, melodia que não havia e que quando ouvida nos faz chorar. A
música acontece no silêncio. É preciso que todos os ruídos cessem. No
silêncio, abrem-se as portas de um mundo encantado que mora em nós –
como no poema de
Mallarmé,
A catedral submersa, que
Debussy musicou. A
alma é uma catedral submersa. No fundo do mar – quem faz mergulho sabe –
a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Me veio agora a idéia
de que, talvez, essa seja a essência da experiência religiosa – quando
ficamos mudos, sem fala. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos
saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia que de tão linda
nos faz chorar. Pra mim Deus é isso: a beleza que se ouve no silêncio.
Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também.
Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num
contraponto...
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Uma ótima semana a todos